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o projeto

Grão, poeira, mofo, rostos de tinta desbotando em folha plástica. Os álbuns de família são uma lupa para identidades. Se uma imagem vale mais que mil palavras, uma imagem produzida pelo próprio retratado, ou por seus parentes e amigos, vale mais? Quanto vale contar a própria história?

 

A fotografia entrou no Brasil para ajudar a desmatar e escravizar. Foi, e é, uma ferramenta de colonização. No início, literalmente. No último país do mundo a abolir a escravidão, atrasado em tantos outros aspectos, a tecnologia fotográfica, na verdade, entrou bem cedo. Foi importada diretamente pela família imperial.

 

A primeira máquina fotográfica em solo brasileiro, um daguerreótipo, foi comprada para Dom Pedro II quando ele tinha apenas 14 anos, idade em que assumiu o trono. O presente foi dado em março de 1840, menos de um ano após a invenção da fotografia. A partir de então foram 48 anos de fotografias produzidas durante a escravidão legal e 49 anos de fotografia produzidas durante o período do império. 

 

Entusiasta, Dom Pedro II contratou diversos fotógrafos europeus para registrar a colônia. Duas pautas foram priorizadas: nossa natureza e os negros escravizados. Foi assim que surgiu a categoria fotográfica "tipos de negros", cartões postais que mais uma vez violentavam pessoas escravizadas, expondo-as à rótulos como o tipo de trabalho aos quais seriam mais aptas.

 

A representação indígena na fotografia durante o século XIX foi muito pequena. As primeiras fotografias de indígenas brasileiros foram feitas, na verdade, na França: cinco daguerreótipos de indígenas Botocudos, parte da etnia Krenak, tiradas durante um evento científico no qual os indígenas foram expostos e explorados como objeto de estudo. Já as primeiras fotografias de indígenas em seus territórios foram feitas por Albert Frisch ao redor de Manaus, em 1865. 

 

No mundo inteiro, a fotografia, nos seus primórdios, foi literalmente utilizada como um braço dos governos imperiais, para catalogar os povos a serem colonizados. O Brasil não escapou disso. Ao longo do final do Império e começo da República do Brasil alguns fotógrafos, europeus, em sua maioria, se destacaram na produção de um acervo de fotos de povos indígenas em solo nacional. O próprio Marc Ferrez, cujo nome é homenageado no prêmio da Funarte que contemplou este projeto, foi o responsável pelas primeiras fotografias de alguns povos indígenas do Brasil. Ele fez parte da Marinha Imperial e da Comissão Geológica do Império do Brasil. 

 

Existem relatos de que diferentes povos indígenas ao redor do mundo acreditariam que a fotografia aprisiona almas. Independentemente do conceito que se tem de alma, fato é que a fotografia aprisionou por quase dois séculos os povos indígenas brasileiros. Ela capturou a identidade de centenas de povos, resumindo-as às poucas imagens produzidas por lentes brancas. 

 

Esse acervo de imagens forma arquétipos racistas que até hoje atrela a existência indígena ao que os movimentos indígenas brasileiros coincidentemente, ou não, têm chamado de "uma fotografia de 1.500". A ideia de que o indígena legítimo seria "puro", não integrado à sociedade nacional, nu e sem contato com tecnologias atuais, tem sido resgatada por movimentos conservadores que, convenientemente, estão ligados a setores da economia interessados em explorar recursos dos territórios indígenas. 

 

Desde de que assumiu a presidência da república, em 2019, Jair Bolsonaro tem sido o principal porta-voz dessa ala anti-indígena da sociedade brasileira.  Exemplo emblemático é a expressão usada pelo ex-ministro do Meio Ambiente, ligado à madeireiros e ruralistas, Ricardo Salles. Ao referir-se a coletivos de comunicação formados por jovens indígenas em 2021, Salles, pejorativamente, os chamou de "tribo do iphone".

 

Cada vez mais, comunicadores indígenas ganham espaço  nas redes sociais e mostram que, assim como utilizar tecnologias fotográficas asiáticas ou comer comidas tradicionais indígenas não faz dos brancos menos brancos, é impossível deslegitimar uma etnia, e consequentemente seu direito sobre o território que historicamente ocupa, por ela não corresponder a um arquétipo estacionado nos séculos. 

 

Portanto, essa disputa ideológica, que no caso dos indígenas, é por sobrevivência, também é uma disputa imagética. Após décadas sendo retratados por olhares que os exotizam, povos indígenas estão finalmente tendo acesso ao controle das imagens sobre si mesmos. De posse das tecnologias, agora os indígenas podem registrar, por imagens, sua própria história, com seu próprio olhar, adentrando essa disputa por narrativas.

 

Mas e antes desse fenômeno da fotografia digital? Antes da existência do Instagram? Isso já acontecia?

 

Álbuns de família são o principal produto da fotografia doméstica no século XX, uma fotografia feita para dentro, para os seus, íntima. São o resultado do maior acesso às câmeras analógicas, possibilitando a cada família registrar seus momentos mais marcantes.

 

Mas foram poucas as décadas em que a revelação de fotografias analógicas e sua organização em álbuns simbolizou um fenômeno cultural no Brasil. Isso porque, por aqui, novamente, essa fotografia supostamente democrática também encontrou todos os obstáculos que travam nossa democracia.

 

Se álbuns de fotografia de família são relicários de memórias, quem tem acesso a essa memória mais antiga são famílias brancas das metrópoles brasileiras. Para a maior parte dos brasileiros, a fotografia analógica nunca chegou.

 

A falta de memória é apontada por inúmeros intelectuais brasileiros como uma das grandes responsáveis por o país fingir passar por cima de atrocidades históricas enquanto elas continuam sendo repetidas.

Memória, muitas vezes, é documento. A verdade é que o país é carregado de memória imagética, mas as documentadas são geralmente aquelas das poucas famílias que sempre tiveram condições de registrar sua história. Na Amazônia brasileira tardiamente colonizada, a posse e propriedade de terras — grande parte grilada — é legitimada por quem primeiro colocou sua história no papel. 

Muito se fala sobre a cultura indígena no Brasil ser registrada de forma oral. Quando a liderança Yanomami Davi Kopenawa dita o que se tornou o livro "A Queda do Céu" para o francês Bruce Albert, inicia dizendo que aquele formato de tinta sobre papel é uma tradução para brancos, palavra que em Yanomami, significa o mesmo que inimigo: napë. Eles chamam as páginas escritas, e de modo mais geral, os documentos impressos contendo ilustrações, de utupa siki, que traduz como "peles de imagens". 

 

Cada vez mais, no entanto, os indígenas no Brasil enxergam a necessidade de disputar as ferramentas dos brancos como estratégia para proteger seus povos e territórios.

 

Vivemos o último ano de um mandato que prometeu, desde a campanha, não demarcar nem um centímetro de terras indígenas. A promessa foi cumprida à risca. O quarto ano de um governo no qual os crimes ambientais explodiram, os índices de desmatamento voltaram a crescer e no qual um pacote de leis e decretos que flexibilizam a legislação socioambiental, deixando a "boiada passar" como prometido por Salles, está no centro do projeto político.

 

Temos um governo que tenta a todo custo estabelecer um marco temporal inconstitucional que legitimaria como territórios indígenas apenas aqueles ocupados por seus povos no dia da proclamação da Constituição de 1988, após décadas de uma brutal colonização amazônica pela Ditadura empresarial militar que utilizou de todo tipo de violência para expulsar esses mesmos povos de suas terras. Um projeto que fere diretamente o Direito originário desses povos. 

 

Levando tudo isso em conta, foi decidido contar um pouco das histórias de três desses povos que até hoje não têm seu território demarcado, que aguardam esses processos congelados na Fundação Nacional do Índio (Funai) enquanto têm seus territórios ameaçados por diferentes frentes econômicas: madeireiras, monocultura de soja, turismo predatório. A forma escolhida para contar essas histórias é o resgate da memória desses povos, mergulhando na intimidade de seus álbuns de famílias. 

 

Os registros mais antigos são raros. Os principais achados do projeto foram álbuns com registros a partir dos anos 1990, quando, finalmente, a fotografia analógica se democratizou no Brasil, e logo antes de ser praticamente enterrada, substituída pela digital. Algumas das fotografias mais antigas encontradas ao longo desse processo foram tiradas por fotógrafos itinerantes que passavam pelas aldeias e comunidades, ou por viajantes e turistas que presenteavam os indígenas com alguns registros, enquanto aproveitavam para levar muitos outros consigo.

 

Os povos indígenas que compõem o projeto são três dos 13 que vivem na região do Baixo rio Tapajós: Tupinambá, Munduruku e Borari. São os mesmos povos que formavam a caravana de "deslegitimada por Salles como "índios de iphone" enquanto protestavam em frente ao Ministério do Meio Ambiente. 

 

Seus territórios ficam a diferentes distâncias da região urbana do município onde se inserem, Santarém, no oeste paraense. Essa distância também é um fator determinante para explicar a ausência de registros mais antigos. Por causa dela, em algumas aldeias visitadas, as câmeras fotográficas demoraram ainda mais para chegar.

 

Assim, todas as fotografias encontradas podem ser consideradas registros raros, uma vez que servem de contraponto à narrativa única sobre a identidade indígena no Brasil. Elas preservam a memória desses povos ao mesmo tempo em que servem como documento para mostrar sua presença  nos cobiçados territórios.

 

As fotografias guardam traços importantes da cultura originária de povos que sofreram décadas de apagamento cultural em uma região que, para a academia brasileira, foi considerada "livre" de indígenas ao longo da segunda metade do século XX. No caso, livre dos indígenas que correspondem à "fotografia de 1.500", sendo morada apenas de inúmeros gentílicos paralelos cunhados no processo desse apagamento: caboclos, ribeirinhos, extrativistas. 

 

Da mesma forma, os álbuns das famílias são apagados com o tempo. Perecem na umidade avassaladora da Amazônia enquanto, principalmente mulheres e, muitas vezes professoras indígenas, se esforçam para preservar essas fotografias. Também por esse motivo, digitalizá-las se faz urgente.

 

Álbuns Originários procura ser um passo para responder a essa urgência, se somando a tantos outros dados pelos movimentos indígenas e por pesquisadores locais, buscando criar uma outra memória sobre o município de Santarém.

 

Ganhador do Prêmio Marc Ferrez de fotografia da Funarte em 2021, o projeto tem como principal objetivo ser um depositório da memória indígena, para ser acessado por uma juventude indígena, e pela população indígena de modo geral, que cada vez mais se vê obrigada a responder a uma série de ataques locais e nacionais sobre a legitimidade de sua origem enquanto resiste e resgata identidades muito mais complexas do que uma única imagem pode valer.

Fotografia em preto e branco de mulher indígena Botocudo sentada em cadeira com um pano cobrindo apenas a parte inferior do seu corpo. A fotografia está adornada por uma moldura dourada
Retrato de três indígenas de etnia não identificada feito pelo fotógrafo Marc Ferrez. O indígena do meio é uma criança, o da esquerda e o da direita são adultos. Os três estão nus e carregam flechas. Estão diante de um fundo de pano com estampa de floresta.
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